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domingo, 10 de abril de 2016

O genocídio indonésio de 1965

Há meio século consumou-se uma das grandes chacinas da História. A partir de Outubro de 1965, os militares indonésios, com o apoio ativo e direto do imperialismo norte-americano, massacraram cerca de um milhão de comunistas, sindicalistas e membros dos poderosos movimentos de massas indonésios. O genocídio indonésio é um dos mais sangrentos episódios da grande guerra de classes mundial com que o imperialismo procurou conter e derrotar o ascenso do poderoso movimento de libertação nacional e social da segunda metade do Século XX, sob o impacto da derrota do nazi-fascismo e do prestígio imenso da União Soviética e do movimento comunista internacional. O genocídio indonésio é exemplo gritante de como a barbárie imperialista dos nossos dias não é um fenômeno novo, mas sim uma característica intrínseca e permanente da dominação imperialista. Como afirmou em 1967 o ex-Presidente dos EUA Richard Nixon, «com o seu patrimônio de recursos naturais, o mais rico da região, a Indonésia é o maior tesouro no Sudeste asiático»1. Para se assenhorear deste 'tesouro', o imperialismo afogou em sangue o povo indonésio. Dez anos mais tarde, os militares 'pró-ocidentais' indonésios desencadeavam novo genocídio contra o povo de Timor-Leste, mais uma vez em coordenação estreita com o imperialismo norte-americano.

Do colonialismo à independência


A Indonésia é hoje o quarto país mais populoso do mundo, com 250 milhões de habitantes. Um vasto arquipélago com mais de três mil ilhas, que foi durante cerca de três séculos e meio colônia da Holanda com a designação Índias Orientais Holandesas. Os enormes recursos naturais da Indonésia enriqueciam a classe dominante holandesa, mas não o povo indonésio. O saldo dessa dominação colonial é ilustrado em duas passagens do livro «Indonésia 1965, The second greatest crime of the Century», de Deidre Griswold2: «Em 1945 [...] 93% da população era ainda analfabeta. Após 350 anos de dominação colonial, havia apenas cem médicos indonésios, menos de cem engenheiros indonésios, e numa nação dependente da eficiência da produtividade das suas terras, só dez especialistas agronômicos indonésios»; «em 1940, só 240 estudantes indonésios completaram o ensino secundário e apenas 37 saíram das Universidades».

A II Guerra Mundial alterou a situação. Com a potência colonial ocupada pelas tropas nazis em Maio de 1940, o Japão imperial e militarista aproveita para ocupar a Indonésia (e a colônia portuguesa de Timor-Leste). Em Março de 1942, os comandantes locais holandeses rendem-se e o controlo japonês estende-se a todo o arquipélago indonésio. A derrota do Japão, em 1945, criou uma situação favorável à afirmação do movimento de libertação nacional indonésio. Em Agosto desse ano é proclamada a independência e o dirigente independentista Sukarno, que havia estado preso durante uma década pelos colonialistas holandeses, ascende à Presidência da nova República. As velhas potências coloniais não se conformam. A Holanda, recém-libertada da ocupação nazi, não está ainda em condições de intervir e solicita ao Império Britânico (então com o governo trabalhista de Attlee) que intervenha em seu nome. Esta colaboração assentava em interesses comuns, nomeadamente no campo petrolífero: em 1907, a Royal Dutch Petroleum, que explorava o petróleo indonésio, fundira-se com a inglesa Shell, numa tentativa de se proteger da concorrência das petrolíferas norte-americanas, que começavam a penetrar na região. No final do Verão de 1945, a capital indonésia Jacarta foi ocupada por tropas inglesas que recorreram mesmo a soldados japoneses ainda presentes em território indonésio para ocupar importantes cidades como Bandung e Semarang. Como relata um historiador britânico3, «Em Semarang [as tropas japonesas] encontraram uma resistência feroz. Só ao cabo de seis dias de pesados combates e com a utilização de tanques e artilharia, conseguiram tomar a cidade, à custa de 2000 indonésios mortos. Quando os britânicos chegaram, a 20 de Outubro, encontraram uma cidade silenciosa, deserta e devastada. Os britânicos elogiaram profusamente as tropas japonesas», chegando mesmo a propor que o comandante japonês fosse agraciado com uma condecoração do Império Britânico. Os adversários da véspera estavam agora unidos no esmagamento da vontade de independência do povo indonésio. Na segunda maior cidade indonésia, Surabaia, os confrontos foram ainda mais intensos e opuseram diretamente as tropas inglesas aos patriotas indonésios. Apesar de ter assinado, em Novembro de 1946, um acordo reconhecendo a República Indonésia, o governo holandês continuou a reforçar a sua presença militar no território e em Maio de 1947, já com 110 mil soldados holandeses no país, desencadeia um ataque generalizado contra as forças indonésias4. A sangrenta guerra colonial haveria de durar até 1949, quando a Holanda foi forçada pela resistência patriótica a abandonar as suas pretensões de domínio colonial direto.

A Indonésia anti-imperialista


A dura luta pela independência acentuou o anti-imperialismo dos patriotas indonésios. No seio do movimento de libertação nacional, os comunistas desempenhavam um papel crucial. Num artigo publicado em 1990 em vários jornais norte-americanos5, a jornalista Kathy Kadane afirma: «O PKI [Partido Comunista da Indonésia] era o terceiro maior Partido Comunista no mundo, com um número de membros estimado em 3 milhões. Através de organizações sindicais e juvenis afiliadas, podia contar com o apoio de mais 17 milhões». A força dos comunistas indonésios resultava do seu papel na luta pela independência, mas também na luta de trabalhadores e camponeses em defesa dos seus interesses de classe. Apoiantes do Presidente Sukarno, os comunistas indonésios procuravam acentuar a natureza anti-imperialista da política externa e o controlo nacional sobre os seus imensos recursos naturais.

O prestígio da Indonésia levou a que, em 1955, a cidade de Bandung acolhesse a Conferência Afro-Asiática que reuniu 29 países – muitos recém-chegados à independência – em que vivia a maioria da população mundial. A Conferência lançou as sementes do Movimento dos Não-Alinhados que seria fundado seis anos mais tarde, na então Jugoslávia.
O curso independente da República Indonésia era, naturalmente, inaceitável para o imperialismo. As ingerências deram lugar a uma primeira tentativa de golpe organizado pela CIA, em 1958. «No seu conceituado livro sobre a CIA, intitulado Invisible Government, os correspondentes em Washington Thomas Ross e David Wise relatam como os EUA abasteceram uma força rebelde de direita na Indonésia com armas e uma pequena força aérea de bombardeiros B-26, numa tentativa para derrubar Sukarno. A tentativa falhou, mas não sem que um dos pilotos americanos, Allen Lawrence Pope, fosse capturado pelas forças lealistas»6.
Um memorando da CIA de 1962 indica que o Primeiro-ministro inglês Harold Macmillan e o Presidente dos EUA John Kennedy já tinham acordado «'liquidar o Presidente Sukarno, conforme a situação e as oportunidades que surgissem'», tendo o agente da CIA que escreveu o referido memorando acrescentado: «não é para mim claro se a palavra liquidar significa assassinato ou derrube»7.
Entrevistado pelo jornalista australiano John Pilger8, o oficial da Força Aérea indonésia Heru Atmojo, leal a Sukarno e que esteve detido durante 15 anos após o golpe de 1965, afirma: «No início dos anos 60 era intensa a pressão para que a Indonésia fizesse aquilo que os americanos queriam. Sukarno queria ter boas relações com eles, mas não queria o seu sistema econômico. Com a América, isso nunca é possível. E por isso tornou-se um inimigo. Todos nós que desejávamos um país independente, livre de cometer os seus próprios erros, fomos transformados em inimigos. Na altura não lhe chamavam globalização, mas era a mesma coisa. Se a aceitasses, eras um amigo da América. Se escolhesses outro caminho, recebias advertências e se não obedecesses, o inferno abatia-se sobre ti».

A carnificina de 1965-66


O inferno abateu-se sobre a Indonésia em Outubro de 1965, e haveria de durar longos meses. Um grupo de oficiais golpistas, cortejados e treinados durante muitos anos pelos serviços imperialistas, desencadeou aquilo que, mesmo a CIA, num seu relatório de 1968, classificou como «uma das piores chacinas em massa do Século XX»9. O jornal inglês The Guardian escreveu, alguns meses mais tarde (7.4.66): «Um funcionário consular em Surabaia considera plausível que o número [de mortos na ilha de] Bali seja 200 mil, numa população de dois milhões. Estimativas do número de mortos [na ilha de] Sumatra também rondam os 200 mil, e uma estimativa análoga para [a ilha de] Java é considerada uma estimativa por defeito. Quando se acrescenta o balanço de mortos noutras ilhas, tais como Borneo ou Sulawasi, o total pode bem exceder 600 mil. [...] Os rios em muitas partes do país estiveram entupidos durante semanas com cadáveres». É bem possível que a fonte do jornal fosse a mesma que relatou ao correspondente da BBC, Roland Challis, que «houve cadáveres que deram à costa nos relvados do consulado britânico em Surabaia»10. Mas da parte do governo inglês não houve apenas silêncio conivente: «Barcos de guerra britânicos escoltaram um navio repleto de tropas indonésias através do Estreito de Malaca, para que pudessem tomar parte neste terrível holocausto»11. A revista norte-americana Time relatava que «A campanha de assassinatos tornou-se de tal forma descarada que em partes de Java oriental bandos islâmicos espetavam as cabeças das vítimas em estacas, que eram depois passeadas pelas aldeias. As matanças têm sido numa escala tal que o enterro dos cadáveres tornou-se num grave problema sanitário em Java oriental e na Sumatra do norte» (17.12.65).



A extensão do envolvimento direto das potências imperialistas no genocídio indonésio foi revelada em 1990 no (já referido) artigo de Kathy Kaldane com o título: «Ex-agentes dizem que a CIA compilou listas da morte para os indonésios – Após 25 anos, americanos falam do seu papel no extermínio do Partido Comunista». As fontes da jornalista incluíam o ex-Diretor da CIA William Colby e Robert J. Martins, que trabalhava na altura na Embaixada dos EUA na Indonésia. Martins, que ajudou a elaborar as listas, afirmou: «Talvez tenham morto muita gente, e devo ter muito sangue nas mãos, mas isso não é tão mau assim. Há alturas em que é preciso golpear com dureza num momento decisivo». As listas entregues pela CIA aos carrascos indonésios incluíam «os nomes de membros dos comités provinciais, de cidade e de outras organizações do PKI, bem como dirigentes das 'organizações de massas'». O ex-Embaixador dos EUA, Marshall Green gabou-se: «'Sei que tínhamos muito mais informação' sobre o PKI 'do que os próprios indonésios'». Ainda segundo o artigo de K. Kaldane, «funcionários da Embaixada [dos EUA] registaram cuidadosamente a destruição subsequente da organização do PKI. Usando a lista de Martins como guião, assinalavam os nomes dos dirigentes do PKI capturados ou assassinados, e acompanhavam o gradual desmantelamento do aparelho do Partido». Nas explícitas palavras de outro funcionário-torcionário da 'maior democracia do mundo': «Ninguém se preocupava se estavam a ser trucidados, desde que fossem comunistas». E mesmo que não o fossem...







































O genocídio cometido pelos militares golpistas chefiados pelo General Suharto – que se viria a tornar Presidente da Indonésia em 1967, cargo que ocupou até 1998 – é normalmente 'justificado' com a tese duma tentativa de golpe que teria sido levada a cabo em 30 de Setembro pelo PKI, com a morte de 6 altas patentes militares. O jornalista australiano John Pilger escreveu em 2002: «desde a queda de Suharto, tem sido recolhido um grande volume de informação que [...] sugere fortemente que Suharto, então comandante militar [da capital] Jacarta, tirou partido duma luta intestina para tomar o poder. Ao certo, pode dizer-se que se se tratou dum 'golpe comunista', tinha uma característica única: nenhum dos oficiais acusados da conspiração era comunista». Certo é que, enquanto os golpistas levaram a cabo um massacre em grande escala, durante meses a fio, o forte Partido Comunista Indonésio foi esmagado sem que houvesse uma reação organizada, sinal de que não havia nem estruturas, nem preparação prévia para uma situação de confronto como a que uma tentativa de golpe ou insurreição exigiria. Em Março de 1967, o New York Times (1.3.67) relatava a defesa dum Brigadeiro-General do Exército indonésio, Supardjo, num julgamento que acabaria por o condenar à morte: «De acordo com o réu [...] a história política indonésia desde 30 de Setembro de 1965 tem sido totalmente subvertida. A tentativa de golpe nessa noite, afirma, não foi uma conspiração comunista e seguramente não visava derrubar o governo. Em lugar disso, afirmou repetidamente aos seus cinco juízes em uniforme que o 'Movimento 30 de Setembro' foi criado para impedir um golpe pelo 'Conselho de Generais' [...] O Sr. Supardjo assinalou com ironia que na sequência do golpe 'o Conselho de Generais alcançou o que visava'. Na realidade, acrescentou, 'os ministros do Governo legal estão hoje nas prisões'  e três deles, incluindo o ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros Subandrio, já foram condenados à morte  apenas resta o Sr. Sukarno»12.

O genocídio indonésio foi saudado efusivamente nas 'democracias ocidentais'. Um artigo da revista Time(12.3.66) brandia o título: «Responsáveis dos EUA eufóricos encaram novo auxílio à economia de Jacarta» e escrevia: «para o Governo [do Presidente] Johnson é hoje difícil esconder a satisfação com as notícias que chegam da Indonésia, dando conta do ocaso político do Presidente Sukarno e dos comunistas. Após um longo período de diplomacia paciente, visando ajudar o exército a triunfar sobre os comunistas, estes responsáveis estão eufóricos ao ver as suas expectativas concretizarem-se». Três meses mais tarde, o New York Times publicava uma coluna com o título «Um feixe de luz na Ásia», onde refere os «desenvolvimentos políticos mais esperançosos» naquele continente, citando como «o mais importante de entre eles» a viragem na Indonésia «duma política pró-chinesa sob Sukarno para uma política abertamente anti-comunista sob o General Suharto». Os elogios mantiveram-se ao longo das três décadas de presidência Suharto, a quem Margaret Thatcher chamou «um dos nossos melhores e mais valiosos amigos»13.


A rapina imperialista

O genocídio indonésio e os apoios e elogios imperialistas não tinham, naturalmente, apenas objetivos políticos. Como escreve John Pilger14, «Em Novembro de 1967, após a captura do 'maior prêmio', dividiu-se o tesouro. A Time-Life Corporation patrocinou uma Conferência extraordinária em Genebra que, durante três dias, planeou a tomada de controlo da Indonésia pelas grandes empresas. Os participantes incluíram os mais poderosos capitalistas do planeta, tais como David Rockefeller. Todas as empresas gigantes do Ocidente estavam representadas: as grandes empresas petrolíferas e bancos, a General Motors, Imperial Chemical Industries, British Leyland, British-American Tobacco, American Express, Siemens, Goodyear, a International Paper Corporation, US Steel. Do outro lado da mesa estavam os homens de Suharto [...] No segundo dia, a economia Indonésia foi dividida, sector a sector [...]. Sob Sukarno, a Indonésia tinha poucas dívidas; ele tinha expulso o Banco Mundial, limitado o poder das empresas petrolíferas e publicamente mandado os americanos 'para o Inferno' com as suas dívidas. Agora chegavam os grandes empréstimos, na sua maioria do Banco Mundial, que tinham por objectivo dar lições ao 'aluno modelo' em nome dos padrinhos do IGGI [Grupo Intergovernamental para a Indonésia, cujos membros principais eram os EUA, Canadá, Europa e Austrália e, sobretudo, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial]. 'A Indonésia', afirmou um funcionário do Banco [Mundial], 'é a melhor coisa que aconteceu ao Tio Sam desde a Segunda Guerra Mundial'».

O terror provocado pela chacina de 1965-66 perdura meio século depois, como fica bem patente nos dois recentes filmes do realizador norte-americano Joshua Oppenheimer («O Ato de Matar» e «O Olhar do Silêncio»). Mas a História não pára. O General Suharto foi derrubado em 1998 por grandes protestos populares associados à 'crise asiática', uma das primeiras expressões do agravamento da crise do capitalismo mundial. É impossível apagar a História. Mais cedo ou mais tarde, o movimento comunista e operário indonésio reerguer-se-á e, com base nas lições do passado, retomará a senda da libertação nacional e social do seu povo.


Link do documentário o Olhar do Silêncio:http://megafilmesonline.net/o-olhar-do-silencio-legendado/


Notas
(1) Citado no livro de John Pilger «The new rulers of the world», Verso 2002, p. 15.
(2) Disponível na Internet, http://www.workers.org/indonesia/index.html. A fonte original da primeira destas citações é do livro «Indonesia Troubled Paradise», de Reba Lewis, mulher dum médico que trabalhou no país para a Organização Mundial de Saúde; a fonte da segunda é o livro «Western Enterprise in Indonesia and Malaya», de G. C. Allan e A. Donnithorne, reimpresso em 2003 pela Routledge.
(3) «The blood never dried  A people's History of the British Empire», John Newsinger, Bookmarks Publications, 2013 (2.ª ed.), p. 212.
(4) Deirdre Griswold, obra citada.
(5) Por exemplo, San Francisco Examiner, 20 de Maio, 1990.
(6) Deirdre Griswold, obra citada.
(7) Citado em J. Pilger «The new rulers of the world», p. 28.
(8) J. Pilger, «The new rulers of the world», p. 36.
(9) Artigo já citado de Kathy Kaldane.
(10) Citado em J. Pilger «The new rulers of the world», p. 32.
(11) J. Pilger, obra citada, p. 33.
(12) Citado na obra referida de Deirdre Griswold.
(13) Citado em J. Pilger «The new rulers of the world», p. 20.
(14) J. Pilger «The new rulers of the world», pp. 37, 39 e 40.

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