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sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Crise capitalista mundial e tendências



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Quando falamos em crise hoje, o que vem à memória, de imediato, é a grande recessão de 2007-2009 que, como sabemos, foi deflagrada nos Estados Unidos pela implosão da bolha hipoteco-imobiliária alavancada pelos chamados títulos subprime, pelos títulos podres, títulos tóxicos.
E que títulos eram esses? Eram hipotecas ruins. Os bancos refinanciaram os imóveis das famílias, garantindo-se com a emissão de hipotecas, mas as famílias não tinham salário suficiente para cobrir este refinanciamento, bancar a cobertura da hipoteca depois. Daí que eram chamadas de subprime essas hipotecas impagáveis. E por que, apesar disso, os bancos refinanciavam os imóveis? Por duas razões: 1) porque podiam emitir derivativos com base nessas hipotecas e vender para terceiros; 2) porque, se o cliente não pagava a hipoteca, tomavam os imóveis dados em garantia. Foi a implosão dessa bolha hipoteco-imobiliária que deflagrou a crise.
A crise inicialmente se manifestou na esfera puramente financeira, com a queda das bolsas. Para vocês terem uma ideia, em 2008 as bolsas de valores no mundo caíram 42%, quase a metade. Logo depois, manifestou-se na recessão, ao cair a produção no mundo capitalista durante aquele período de 2007-2009; o resultado foi o forte aumento do desemprego: a taxa de desemprego nos Estados Unidos, que estava em 4% da força de trabalho, subiu para a faixa de 11%. A crise saiu da esfera puramente financeira e atingiu a esfera real da economia.
O que provocou a implosão da bolha? A elevação da taxa de juros pelo Federal Reserve (Fed), o banco central dos EUA. Essa elevação, por sua vez, decorreu da dificuldade crescente de refinanciamento das dívidas dos EUA, que se expandiam graças ao forte crescimento do déficit trigêmeo: externo, público e familiar.
Qual foi reação dos governos? Chamaram o Estado, que vinha sendo demonizado, para salvar o mercado dele mesmo, salvar os monopólios da própria ação deles. Em 2008, os governos das principais potências, basicamente Estados Unidos, Europa e Japão, comprometeram-se em gastar US$ 7 trilhões, somente naquele ano, mais de 10% do PIB mundial. O compromisso que assumiram foi injetar esse dinheiro na economia por meio de pacotes fiscais.
Além disso, os Estados Unidos logo depois começaram a montar o que eles chamam de quantitative easing, que tinha sido inaugurado pelo Japão; depois, os Estados Unidos adotaram e a Europa também. Consiste no relaxamento monetário, afrouxamento monetário, na emissão de dinheiro para comprar ativos financeiros dos bancos e injetar esse dinheiro em circulação a custo zero.
O Banco Central dos Estados Unidos, ao longo das várias etapas do chamado quantitative easing – que começou em 2008 e foi até 2014/15 – injetou US$ 4,5 trilhões nas burras dos bancos, o que corresponde a mais de um quarto do PIB dos EUA naquele momento. O Banco Central emitia essas toneladas de dólares e comprava ativos financeiros dos bancos. E se dizia que, através dos bancos, esses dólares passariam a circular na economia. E como circulou na economia? Basicamente, os bancos tomavam esse dinheiro a juros zero ou em torno de zero e emprestavam pelo mundo afora, inclusive para países da periferia do mundo capitalista. E o resultado disso foi a desvalorização do dólar, que era o que eles queriam: desvalorizar o dólar para aumentar as exportações dos Estados Unidos.
Como vimos, as ações iniciais consistiram nos pacotes fiscais e depois veio o quantitative easing. O que eles disseram então? Que a economia do mundo ia sair da crise, que o Estado – que eles diziam que não servia mais para nada – injetou dinheiro na economia, e que assim haviam tirado o mundo da recessão, e que isso era uma política keynesiana.
Na verdade não era. A política keynesiana não consiste em injetar dinheiro nos bancos; a política keynesiana para enfrentar recessões, para enfrentar crises, se traduz em gerar demanda, tanto através do gasto público quanto da melhoria dos salários, além de realizar investimentos, basicamente em infraestrutura.
Quem fez uma política mais próxima dessa orientação naquele momento? A China. A China baixou um pacote de investimentos em infraestrutura de US$ 580 bilhões e iniciou um processo de redistribuição de renda a partir da melhoria dos salários. De 2008 até 2012, o salário real médio, o poder de compra dos salários na China, cresceu quatro vezes mais do que a produtividade. Então, melhorou a distribuição de renda e a infraestrutura e isso contribuiu para evitar que a China sofresse mais profundamente os efeitos da crise mundial. Chegou a diminuir o ritmo de crescimento, pois seu PIB vinha crescendo a um ritmo de 9,5% a 10% ao ano desde 1980 e baixou recentemente para a faixa de 6,5%, mas manteve a economia crescendo num patamar ainda elevado para os padrões mundiais. Isso porque o Estado chinês tem o papel fundamental de realizar esse enfrentamento da crise: criando infraestrutura e distribuindo renda.
Veremos adiante por que a China adotou uma política econômica diferente e pôde escapar, ainda que não ilesa, da crise mundial.
Bem, mas aí os governos, a mídia e os economistas neoliberais propalaram mundo afora que a economia mundial havia saído da recessão a partir de 2010. Surpreenderam-se porque logo depois, em 2012-2013, veio a segunda onda do desenvolvimento da crise na Europa, com uma violenta recessão, que todos nós acompanhamos. Foi a maneira com que a crise repercutiu na Europa, que tinha comprado aqueles títulos podres alavancados pelas hipotecas dos Estados Unidos, os bancos quebraram, os governos entraram para salvar os bancos e para isso se endividaram, gerando déficit, gerando dívida, e isso terminou detonando a crise na Europa também.
Logo a seguir, a partir de 2014-15, quando voltaram a alardear que as coisas haviam melhorado, e que a Europa tinha saído da recessão, a crise rebate, em sua terceira onda, na periferia do mundo capitalista, e aí temos os exemplos do Brasil, da Argentina, da Venezuela e outros países. Ao final, vou retomar esta questão da crise na periferia.
Além disso, além da crise não ter ido embora e haver retornado dessa maneira que registrei, a taxa média de crescimento de 2010 até o ano passado das principais economias do planeta foi medíocre. O PIB dos Estados Unidos cresceu a uma média de 2% ao ano, e oscilando – ora crescia 2,5%, ora crescia 1,5%. Além de baixo, um crescimento altamente oscilante. O Japão cresceu 1,5% ao ano, a Europa 1% e oscilando violentamente.
Se não bastasse isso, qual é o grande debate que se trava sobre a economia mundial atualmente? Não é se a economia vai entrar em recessão ou deixar de entrar, é quando vai ser a próxima recessão. Isso se manifesta inclusive nos relatórios das chamadas instituições multilaterais: o Banco Mundial está com esta posição de que vai ocorrer um desaquecimento da economia, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Organização Mundial do Comércio (OMC)… Inclusive o Sistema de Reserva Federal (Fed) nos Estados Unidos está mais ou menos suspendendo a programada elevação dos juros, de um lado pressionado pelo presidente Trump, mas também porque está avaliando que a economia tende a desaquecer.
E já apareceram os primeiros sintomas, que ocorreram no final do ano passado, quando houve uma violenta oscilação no mercado financeiro mundial, basicamente nas bolsas. E há elementos com que se pode afirmar que realmente a recessão vem. Quando alguém me pergunta quando, digo que não sou Nostradamus para saber qual é a data, só sei qual é a tendência.
A tendência é essa, de advir nova recessão. Vou citar basicamente dois elementos importantes sobre isso. De um lado, a chamada massa de recursos que está fora da esfera produtiva, que está na esfera puramente financeira e que se manifesta basicamente através dos chamados derivativos, que são títulos emitidos em cima de outros títulos, inclusive a partir de uma variação de juros. A maior parte dos derivativos é em cima da variação de juros.
O Banco Internacional de Compensações, o BIS, que é considerado o banco central dos bancos centrais, calcula a evolução do montante dos derivativos no mundo. Naquele momento que iniciou a crise, em 2007-2008, estava na faixa de US$ 596 trilhões, que correspondia a nove vezes o PIB mundial. Depois oscilou, subiu, desceu, e atualmente voltou para o mesmo patamar daquela época. Um dos elementos que detonou a crise daquela época foi a magnitude da pirâmide financeira alavancada pelos derivativos. Agora voltou para o mesmo patamar.
Outro dado importante é a dívida. Costuma-se falar em dívida pública, crescimento da dívida pública, que isso gera vulnerabilidade do Estado e tal. A crise se manifesta também em outros tipos de dívida. As dívidas pública e privada no mundo cresceram de maneira violenta nos últimos dez anos. Atualmente, a soma dessas duas dívidas, que incluem o Estado, as empresas e as famílias, está em US$ 233 trilhões, o que significa três vezes o PIB mundial.
E basicamente o que cresceu mais foi a dívida das empresas. A dívida privada dobrou nos últimos dez anos na sua relação com o PIB. Então o que está sendo dito pelos economistas é que a tendência é que desta vez a crise vai começar não pela dívida das famílias, como foi a de 2007, não pela crise da chamada nova economia, baseada na informática, como foi a de 2001, mas pela dívida das empresas. Bem, esta é uma possibilidade muito grande.
Disse antes que a dívida empresarial dos últimos dez anos – a partir da crise de 2007 – duplicou, só que duplicou a uma taxa de juros próxima de zero, que era o quantative easing e toda aquela política adotada de relaxamento monetário que estava próxima de zero. Só que a taxa de juros está subindo. E está subindo não é para combater a inflação, como dizem, e sim para poder viabilizar o financiamento dos três déficits dos Estados Unidos. Por isso que eles elevam a taxa de juros. E, ao elevarem, vão terminar trazendo como consequência a quebradeira das empresas.
Até agora, discorri mais sobre a esfera mais aparente, mais de superfície, da crise. E isso é parte do problema. A gente começa avaliando por aí. Mas, para entender esta crise em profundidade e perceber as tendências, é preciso ver os elementos mais de fundo que estão por trás dessa crise. E, para entender os elementos mais de fundo, parto da avaliação de que essa crise de 2007-2009, bem como a de 2012-2013 na Europa e a de 2014 em diante aqui na América Latina, são o desdobramento de uma crise mais geral.
Que crise mais geral é essa? É uma crise prolongada, de natureza estrutural, que nasceu no começo da década de 1970. Aí alguém pode perguntar: mas como uma crise estrutural dura esses anos todos? Afinal, de lá para cá já se vão quase 50 anos. Parto da seguinte ideia: além do ciclo convencional comum que existe no capitalismo, que na época de Marx era a cada 12 anos, depois foi encurtando e atualmente está na faixa de seis anos, além do ciclo convencional comum, existe no capitalismo uma onda larga, também chamada de ciclo longo, cuja formulação muita gente atribui a Nikolai Kondratiev, que era um economista russo. Kondratiev cuidou de precisar melhor do ponto de vista estatístico, de definir melhor a periodização, mas essa ideia surgiu de um outro russo. Quem primeiro formulou esta concepção de onda larga foi Alexander Parvus, que foi militante do Partido Social Democrata da Alemanha no final do século 19. Era russo, mas foi para a Alemanha, aproximou-se de Rosa Luxemburgo e passou a manter relações com os bolcheviques. O defeito dele era ser amigo do Trotsky e também teve uma trajetória meio complicada em sua relação com o governo alemão. Mas a César o que é de César: quem primeiro elaborou esta ideia do ciclo longo, de onda larga, foi ele. Na formulação dele, trata-se de um ciclo de 50 anos, sendo que a primeira metade é uma fase em que a economia mundial está se expandindo – isso não significa que não ocorram crises nessa fase. Há crises, sim, mas o que prepondera é a prosperidade, a expansão. Aí vem a segunda metade, em que a economia está declinando. E não significa que não haja momentos de crescimento; existe, sim, mas o que prepondera são as crises.
A periodização que considero adequada é constituída de quatro ondas. A primeira que vai de 1770 a 1840 – na época da primeira revolução industrial; a segunda onda que vai da década de 1840 à de 1890; a terceira que vai de 1890 até o final da Segunda Guerra Mundial; e uma quarta onda que corresponde ao período pós-guerra. Muitos economistas manifestam a opinião de que a economia capitalista mundial já superou essa quarta onda e que já estamos na quinta. Vou procurar demonstrar que ainda estamos naquela quarta onda, a onda do pós-guerra.
A partir do imediato pós-guerra, houve um longo período de prosperidade econômica, por isso mesmo chamado de idade dourada do capitalismo, que vai da Segunda Guerra Mundial até o final dos anos 1960. E há o período que, segundo alguns economistas, inicia no final dos anos 1960, com algumas recessões que ocorreram então. Mas acho que o sintoma inicial que anunciou este novo período da onda larga de pós-guerra, que é um período de decadência, foi a decisão do presidente Richard Nixon em 1971 de suspender a paridade e a livre conversibilidade do dólar. E ele suspendeu não porque fosse um cara perverso, um cara mau e tal; suspendeu porque os EUA não possuíam mais reservas em ouro, haviam se deteriorado, para dar conta da livre conversibilidade do dólar em ouro. E suspendeu também porque tinha que acabar com a paridade. Foi o maior calote de todos os tempos. E tinha que acabar com a paridade porque havia iniciado um processo – e isso está na origem da crise – de geração de déficit externo, déficit comercial na balança dos Estados Unidos. E, como veremos, esta questão é fundamental.
Trabalho com a ideia, formulada por Marx, de que as crises capitalistas são originadas pela irrupção do conjunto das contradições da economia capitalista. Não é uma contradição só, e ele trabalhava basicamente com três: a queda da taxa de lucro, o subconsumo das massas e a desproporção entre os setores da produção, ainda que considerasse a queda da taxa de lucro como a principal. Mas ele já tinha se referido a uma quarta, que é um elemento fundamental na dinâmica da economia capitalista, que é o desenvolvimento desigual, que Lênin retoma e trabalha no seu célebre livro “Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo”.
Deste conjunto de contradições, vou destacar duas que são preponderantes na deflagração da crise no começo dos anos 1970. A primeira é a queda na taxa de lucro. O que ocorreu no período a partir da Segunda Guerra Mundial? Começou a haver um processo de incorporação ao processo produtivo de tecnologias que tinham sido descobertas durante a guerra. Então, houve um avanço tecnológico importante no período de pós-guerra. Se se vai incorporando mais e mais tecnologia, aumentando a quantidade de máquinas, substituindo trabalhadores, trabalho vivo, por máquinas, a tendência é a taxa de lucro cair, porque quem gera valor novo, consequentemente quem gera excedente econômico, mais-valia, é o trabalho vivo. Se o trabalho vivo em termos relativos cresce menos que o trabalho morto, a tendência é que a massa de excedentes, a massa de mais-valia sobre o capital, tende a diminuir. Então, isso ocorreu naquele momento: a partir de determinado período, notadamente a partir de meados da década de 1960, a taxa de lucro começou a cair nas principais economias capitalistas.
Isso foi reforçado por dois elementos. A partir do final dos anos 1960, os países da periferia conseguiram em vários casos melhorar a sua relação de troca com a economia central, melhorando o preço vendido das suas matérias-primas. Essa força dos países da periferia derivou basicamente de sua união no Movimento dos Países Não-Alinhados e em organizações de produtores de matérias primas, como a OPEP. Isso reforçou o aumento do gasto em capital constante nos países centrais, pressionando o aumento do gasto no trabalho morto. Por outro lado, a taxa de mais-valia, o grau de exploração da força de trabalho, ou estabilizou ou chegou até a diminuir na segunda metade dos anos 1960. E isso basicamente porque se chegou a um índice de desemprego muito baixo, ensejando mobilizações importantes da classe operária no mundo, o que possibilitou a melhoria do poder de compra dos salários.
Já havia o chamado welfare state, o estado de bem-estar, que tinha cedido uma série de direitos aos trabalhadores no mundo, que em grande medida foi em função da luta dos trabalhadores, mas também em função do medo do imperialismo em relação à União Soviética. O certo é que aumentou o poder de compra dos salários e chegou o momento em que os salários cresceram mais do que a produtividade do trabalho. Isso estabilizou, estancou a taxa de mais-valia, empurrando para baixo a taxa de lucro. Este é um primeiro elemento que está na origem daquela crise. Isso significa que, em sua atual etapa, o imperialismo não consegue conviver com a melhoria das condições de vida dos trabalhadores dos próprios países desenvolvidos e muito menos dos povos da periferia.
O segundo elemento é o desenvolvimento desigual. Os Estados Unidos começaram a perder em crescimento de produtividade para o Japão e para a Alemanha. Durante um período razoável, que vai dos anos 1950 até os anos 1980, o Japão e a Alemanha lograram que sua produtividade do trabalho crescesse várias vezes mais que a dos Estados Unidos – de 1960 a 1976, a produtividade do trabalho no Japão cresceu 289%, a da Alemanha 145% e a dos EUA 57% – e consequentemente puderam baixar o preço das suas mercadorias. E, ao baixá-los, começaram a penetrar no mercado dos Estados Unidos e em outros mercados que eram dominados por suas corporações. O resultado é que isso determinou o aumento das importações pelos Estados Unidos e a dificuldade de aumento das exportações, gerando um déficit crônico na sua balança comercial. E como esse déficit era pago? Já que havia livre conversibilidade do dólar, o Japão e a Alemanha recebiam em dólar e convertiam em ouro. E, ao converterem em ouro, as reservas dos Estados Unidos, como num passe de mágica, saíram dos seus cofres e foram parar nos cofres do Japão e da Alemanha. Não foi nenhum assalto dos irmãos Metralha ao cofre do Tio Patinhas; foi uma decorrência inevitável do desenvolvimento desigual. Então, os EUA perderam quase todas as suas reservas em ouro. E começaram a se endividar. Em meados dos anos 1980, já eram os principais devedores líquidos do mundo.
A primeira reação mais importante a este declínio da economia estadunidense foi feita pelo governo de Ronald Reagan, a chamada reaganomics, que significava dentre outras coisas aumentar o gasto para injetar dinheiro na economia – aumentando basicamente o gasto militar – e reduzir o imposto das grandes empresas. Além disso, junto com Margareth Thatcher, na Inglaterra, Reagan atacou o trabalho para tirar direitos dos trabalhadores e reduzir o poder de compra dos salários. Some-se a isso a forte pressão sobre as economias da periferia, os exportadores de produtos primários – basicamente o petróleo, que chegou a baixar o preço violentamente – para poder sair da crise. Kissinger, que fora um poderoso Secretário de Estado na década anterior, chegou a declarar que, para que os EUA – leia-se: suas corporações monopolistas – seguissem vivendo como antes, precisariam de matérias primas a custo de extração.
Essa política possibilitou uma ligeira melhora na economia dos Estados Unidos naquele período, mas logo depois, no final dos anos 1980, ao final do governo Reagan, já havia entrado em crise novamente. E tinha deixado uma pesada herança, uma dívida pública violenta. Já havia a dívida externa, ocasionada pelo déficit comercial, uma dívida externa que na metade dos anos 1980 já era a maior dívida líquida mundial, e então surgiu a dívida pública. Surgiu um déficit público pela combinação entre aumento do gasto militar e redução dos impostos sobre os ricos, derivando daí uma dívida pública. Por isso, tem-se falado em “déficit gêmeo”, o déficit externo e o déficit público. Essa dívida conjunta serviu de base para a alavancagem de derivativos cujo montante passou a crescer de maneira vertiginosa, formando uma massa de ativos financeiros descolados da economia real, a não ser para se apropriar de valor ali gerado. Era a emergência e desenvolvimento da chamada financeirização da economia.
Depois, surgiu o terceiro componente do déficit, que foi o déficit familiar. Com o arrocho dos salários promovido a partir de Reagan, boa parte das famílias dos Estados Unidos ficou incapacitada de garantir seu sustento nos níveis em que viviam antes. Os arautos do neoliberalismo têm dito que houve a farra do consumo. Não houve farra do consumo, mas redução dos salários. E como as famílias lidaram com isso? Refinanciando seu imóvel, tomando recursos nos bancos para poderem se manter. Só que depois não conseguiram pagar. Daí que tenho falado em déficit trigêmeo: o déficit público, o déficit externo e o déficit das famílias.
A segunda tentativa de enfrentar a crise foi através da imposição do neoliberalismo, particularmente na periferia do mundo. O grito inaugural da nova ideologia, retomando ideário que havia sido plantado na década de 1940 por críticos do keynesianismo (destacando-se Ludwig von Mises, Friedrich von Hayek e Milton Friedman), foi em 1989 quando se estabeleceu o chamado Consenso de Washington; a partir daí, impôs-se ao mundo o neoliberalismo, que implicava, basicamente, em abrir espaço mundo afora aos capitais e mercadorias dos Estados Unidos.
O certo é que, apesar disso, a economia estadunidense não saiu da crise. Melhorava um pouco para logo entrar em crise novamente, arrastando o resto da economia mundial capitalista. Não conseguia sair daquela crise iniciada no começo dos anos 1970 e seguiu em declínio.
Então, vem a pergunta: por que a economia dos EUA e a economia mundial não lograram sair da crise? Por que, depois de completados na década de 1990 20-25 anos da fase de declínio da onda larga de pós-guerra, a economia mundial não conseguiu ingressar em nova onda larga, como ocorrera nas ondas anteriores? Há uma imensa massa de recursos na esfera puramente financeira, cristalizada basicamente nos derivativos, que está fora da esfera produtiva. Contata a esfera produtiva só para se apropriar de valor ali gerado. Por outro lado, há uma gigantesca massa de trabalhadores desempregados. Os abertamente desempregados, que seguem à procura de emprego, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), são 172 milhões de pessoas. E, se considerarmos o conjunto do trabalho informal no mundo, boa parte dele precário, são dois bilhões de pessoas.
Portanto, há uma imensa massa de recursos financeiros e uma massa gigantesca de força de trabalho fora da esfera produtiva. Qualquer economia minimamente racional faria o quê? Colocaria os recursos financeiros na esfera produtiva, contrataria força de trabalho, e passaria a produzir. Por que não é feito isso? Por duas razões básicas. De um lado, porque a taxa de lucro segue baixa. Apesar de ter melhorado um pouco a partir da segunda metade dos anos 1980, seguiu bem abaixo da taxa de lucro que vigorara antes: a metade da taxa de lucro de meados dos anos 1960. Então, o capital fica na esfera puramente financeira, mesmo correndo o risco de perder nos momentos em que implode a pirâmide. E, quando desce para a economia real, não é para aumentar a capacidade produtiva, mas para se apropriar de capacidade produtiva já existente.
Por outro lado, se for colocar esta massa de recursos para produzir, vai defrontar com a situação de estreitamento do mercado mundial. E qual é a principal alavanca do mercado? É o salário. E o que ocorreu com o salário nestes anos todos? O salário e os direitos foram jogados lá pra baixo. Esse é um motivo.
O outro motivo é o seguinte: acho que não se incorporaram ainda os avanços tecnológicos que estão colocados na realidade para poder alavancar uma nova onda larga, um novo padrão de reprodução do capital, um novo processo de expansão prolongada do sistema capitalista. Não se incorporou com a profundidade necessária.
Se considerarmos a primeira revolução industrial, de 1770 a 1840, ela transformou o mundo, consolidou o capitalismo, e a produtividade do trabalho aumentou violentamente, consagrando a primeira grande potência capitalista, a Inglaterra. Se considerarmos a segunda revolução industrial, no final do século 19, começo do século 20, também transformou o mundo, contribuiu para consolidar a nova etapa do capitalismo, o imperialismo, abrindo o caminho para a substituição da Inglaterra como potência hegemônica pelos EUA, que se consolidam no pós-Segunda Guerra. A chamada terceira revolução industrial, com base na informática, que tem a robotização e as tecnologias de informação como seus elementos importantes, tem avançado pelo mundo afora, mas acho que ainda não o suficiente para alavancar o processo produtivo de maneira mais permanente, não para se transformar numa revolução das forças produtivas.
E o que está sendo chamado agora de quarta revolução industrial, ou indústria 4.0, cuja ideia surgiu na Alemanha, também tem como elemento importante a informática. Se tem como base a informática, isto é, a rede 5G, a inteligência artificial, a internet das coisas, também fundamenta-se em elementos da chamada terceira revolução industrial. Acho que isso ainda não foi incorporado em profundidade ao processo produtivo e não incorporou em grande medida porque a taxa de lucro inviabiliza, a taxa de lucro é baixa. E se esses avanços tecnológicos forem incorporados ao processo produtivo, substituindo em larga escala o trabalho vivo pelo morto, vai diminuir mais ainda a taxa de lucro. Como quem produz é o trabalho vivo, se substituir o trabalho vivo por trabalho morto, a taxa de lucro tende a cair mais ainda.
Pensando cá com meus botões, uma revolução industrial só se consolida se se faz acompanhar de uma revolução profunda na questão energética, não só mudando as fontes de geração de energia, como mudando a forma de geração de energia. Foi assim na primeira revolução industrial com a máquina a vapor, tendo como matéria-prima o carvão mineral; e também na segunda revolução industrial com o motor a explosão e a eletricidade, tendo como matéria-prima base o petróleo; não ocorreu ainda uma terceira ou quarta revolução energética. Têm ocorrido avanços tecnológicos impressionantes, mas tendo a achar que esses elementos que estão na chamada quarta revolução tecnológica já estavam na suposta terceira, só que aprofundando em intensidade o uso da informática. Mas aí, para consolidar uma nova revolução tecnológica, tem-se que resolver a questão energética.
E tendo a achar que a revolução energética que está em preparo, em embrião, mas já bastante avançada para poder mudar a questão energética, é a energia nuclear com base na fusão.
A fissão tem problemas sérios de riscos e rejeitos, além de matéria prima escassa, e por isso não tem condições de se generalizar, de ser a base de uma revolução energética e, portanto, tecnológica. Mas a fusão, se forem resolvidos os problemas técnicos de domesticação da explosão, tem amplas condições de alavancar uma nova revolução energética. Claudio Campos e eu estivemos na Rússia logo depois da queda da URSS e falamos com alguns cientistas envolvidos com essa questão e eles já estavam bastante avançados naquela época. Depois, soube que eles repassaram bastante informações para a China e esta desenvolveu um programa próprio de fusão nuclear. E está bastante avançado. Buscou um caminho próprio e está muito próximo de resolver o problema. Se resolverem essa questão, estaremos bem próximos do reino da abundância do qual falava Marx. Estou falando do ponto de vista técnico-material, porque a questão energética a partir da fusão tem matéria-prima infinita que é o hidrogênio, que tem na natureza, no ar, nas águas. Tendo a achar que esta é uma questão chave e não é à toa que é a China que está mais avançada neste processo, porque ela não está constrangida pelos elementos que estão presentes do lado capitalista, que são elementos que têm a ver com o domínio dos monopólios, domínio do capital financeiro, taxa de lucro baixa. Porque a lógica que move a China é outra; então, ela tem mais facilidade de incorporar elementos da revolução tecnológica, da revolução científico-técnica, do que a meu ver o sistema capitalista mundial. E está avançando bastante neste sentido.
Mencionei antes que, na raiz da crise estrutural mundial, encontrava-se, além da queda da taxa de lucro e de outras contradições, o desenvolvimento desigual, que na época se manifestava no declínio relativo da economia dos EUA em relação às do Japão e da Alemanha. Isso ocorreu no período que vai dos anos 1950 à década de 1980. Atualmente, no entanto, conforme demonstrou o prof. Luis Fernandes, manifesta-se na forte expansão das forças produtivas da China em detrimento dos EUA.
E por que os Estados Unidos, no fundamental, vêm declinando do ponto de vista econômico? A questão chave é que, nessa época decadente de domínio do capital financeiro, quem comanda seu Estado é a oligarquia financeira, e o usa para favorecer o parasitismo, o rentismo, e não a atividade produtiva. Os pacotes fiscal-monetários adotados a partir da grande recessão de 2007-2009 expressam essa realidade: foram injetadas toneladas de dólares para comprar os títulos podres armazenados nos bancos. Não significa que não haja estímulo à atividade produtiva; significa que o preponderante, inclusive na crise de agora, é favorecer a oligarquia financeira.
Na China, a força social que comanda o Estado através do Partido Comunista estabeleceu que sua prioridade é o desenvolvimento das forças produtivas, como base para o desenvolvimento do país, e para isso recorre ao Estado nacional como instrumento fundamental para realizar esse desenvolvimento. Independente de se manter nos marcos do socialismo ou haver transitado para o capitalismo de Estado, o fundamental é que a China tem utilizado esse instrumento poderoso que é o Estado nacional como instrumento do desenvolvimento. É certo que, numa sorte de NEP tardia, a China incorporou crescentemente mecanismos de mercado desde a Reforma de 1978, liderada por Deng Xiaoping. Por isso, há os que consideram que foram esses mecanismos de mercado os principais responsáveis por essa forte e prolongada expansão das forças produtivas. Se esses mecanismos têm esse condão, por que então as chamadas economias de mercado – isto é, capitalistas – estão, no fundamental, mergulhadas na estagnação há décadas? Os mecanismos de mercado, ao contrário, se ultrapassarem os limites em que possam ser controlados pelo Estado, podem ser importantes fatores de crise, como ocorre nas economias capitalistas. Foram eles que serviram de correia de transmissão para que a grande recessão deflagrada em 2007 se introduzisse na economia chinesa, derrubando seu ritmo de crescimento. Como vimos, foi a ação do Estado chinês que evitou que a queda fosse maior.
Esse soerguimento econômico da China, ao lado da decadência dos EUA, vem provocando o renascimento do multilateralismo, que havia sucumbido com o fim da União Soviética. Mas, ao mesmo tempo em que o renascimento do multilateralismo tem essa base econômica, cabe o registro, feito pelo companheiro Antônio Pimenta durante o seminário, de que no plano político tem cabido à Rússia, no que tem sido visto como um “renascimento”, o principal enfrentamento à política imperialista de Washington, como visto recentemente na Síria e, agora, na Venezuela.
Esse papel político da Rússia tem como base sua condição inegável de superpotência nuclear e a prevalência de uma orientação pela soberania em seu governo, e é exercido em ampla unidade com a China, além de reforçado com instrumentos como a União Euroasiática, o Tratado de Xangai e os Brics.
A recusa da Rússia, acompanhada pela China, no Conselho de Segurança da ONU, de que a Síria sofresse o mesmo destino da Líbia, em 2013, marcou a restauração mínima da Carta da ONU, garantindo o espaço para a ajuda militar no período mais difícil, o que decidiu a vitória síria.
A ordem unilateral que sucedeu ao desmoronamento da União Soviética está definhando, o que limita a possibilidade de o império estadunidense seguir tentando impor a extraterritorialidade das suas leis internas, assim como o uso político de instrumentos supostamente ‘neutros’, como o desligamento do Irã do sistema de pagamentos internacional Swift, o que chegou a ser aventado contra a Rússia no auge da crise do referendo na Crimeia. Limita, mas não impede: as potências imperialistas tendem a ficar mais agressivas no momento de decadência.
Outro aspecto da política da Rússia tem sido a aliança com a Opep para sustentar o preço do petróleo, bem como a desdolarização de sua economia, dois aspectos que estão interligados.
Ao mesmo tempo, a Rússia busca manter relações intensas com a Europa, particularmente com a Alemanha, como se vê hoje com o Nord Stream. Os europeus são os maiores parceiros comerciais da Rússia, mas a importância da China é crescente.
A marcha da Rússia a leste se intensificou, com os acordos com a China para fornecimento de gás e para projetos conjuntos nos setores de tecnologia de ponta (aviões civis de grande porte, fusão nuclear e outros).
No plano econômico, a Rússia, em termos de PIB medido pela paridade de poder de compra, vem disputando com a Alemanha a quinta posição, e o objetivo colocado pelo governo Putin é de que a Rússia esteja entre as cinco maiores economias do mundo. As sanções decretadas por Washington contra a Rússia e acatadas pelos europeus permitiram que parte da indústria leve e do setor agrícola – especialmente grãos – fosse reativada, depois de desmontada na década de 1990. Além disso, o Estado voltou a ter um papel fundamental na economia: além dos bancos estatais, a parte mais importante do petróleo e gás foi reestatizada, além de unificada a indústria de defesa, que é estatal.
O desenvolvimento desigual, que possibilita o soerguimento da China e a retomada da Rússia, ao mesmo tempo em que declina o império estadunidense, reforça as tendências à crise estrutural do sistema capitalista mundial.
O certo é que nós estamos nesta crise mais geral, estrutural, profunda, que abre duas grandes possibilidades. De um lado, abre a possibilidade de uma mudança. Aquela colocação do Marx: quando as forças produtivas ultrapassam as relações de produção prevalecentes, abre-se um período de crise e a possibilidade de uma mudança, de uma transformação, com a ruptura das relações de produção. Foi isso que ocorreu na última crise estrutural, de 1914 a 1945. Ocorreu a primeira revolução socialista da história, e abriu espaço para a descolonização da África e da Ásia e para o welfare state na Europa. Mas, se as mudanças não são feitas, aí abre espaço para o retrocesso. Um momento de crise não implica necessariamente que vai haver transformação, pode haver retrocesso.
As revoluções se fazem no momento de crise, não no momento de normalidade. Mas não uma crise qualquer. Uma crise cíclica não necessariamente abre espaço para uma revolução, pois é um período curto, mas uma crise estrutural, mais profunda, mais prolongada, abre espaço para a transformação. Mas, se as forças revolucionárias não aproveitam a crise para transformar, para fazer a revolução, aí a direita cresce e vem a possibilidade de retrocesso.
Assim, temos de buscar uma alternativa a esta situação do capitalismo, precisamos de uma alternativa. E, nesta alternativa, uma questão chave, decisiva, a meu ver, é definir quem é o inimigo principal. Se não se define o inimigo principal, não se podem definir quais são as forças que se vai reunir para fazer a revolução e as transformações.
O inimigo principal é a oligarquia financeira que comanda a principal potência imperialista do mundo, os Estados Unidos. Está em decadência, mas segue forte, armada até os dentes e acirrando seus ânimos agressivos, como costuma ocorrer com qualquer potência em declínio. Se é esse o inimigo principal, abre espaço para uma ampla coalizão para isolá-lo. E esse inimigo está nos dando cada vez mais razão, porque a cada ação mais contribui para o seu isolamento.
Esta questão da Frente Ampla, no meu entender, não é só uma questão brasileira. Temos acompanhado a emergência no mundo das forças da ultradireita, fato que tem sido destacado pelo companheiro Renato Rabelo. Então nós temos que formar uma frente a nível internacional. Temos que buscar em todas as nossas relações internacionais formar a frente mais ampla possível, que isole o imperialismo, que isole a oligarquia financeira, de cujas entranhas nasce a ultradireita. Quanto mais avançarmos nisso, mais criaremos as condições para nossa alternativa se viabilizar.
Como essa crise mundial se reflete na periferia? Seu impacto decorre da forma dependente como a periferia se insere no mundo capitalista. Mas seu impacto na periferia não quer dizer que necessariamente ela tenha que entrar em crise. Vai depender, em grande medida, da ação que seus governantes têm diante da crise. É preciso, como condensa ideograma chinês para crise, aproveitar a crise como oportunidade para fazer a transformação.
O impacto da crise mundial sobre as nações da periferia e particularmente na América Latina não é algo definitivo. A consequência dele depende da reação que se tenha, da resposta que se dê. Por exemplo, qual foi a resposta que Getúlio Vargas deu à crise de então? Implementou um Programa Nacional de Desenvolvimento para transformar o país de agroexportador em urbano-industrial. Um governo da ditadura de 1964, o do general Geisel, diante da crise da década de 1970, adotou o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), e, por isso, enquanto o mundo estava em crise, o Brasil seguia crescendo. Se a resposta é essa, aproveita-se a crise, como dizem os chineses, como oportunidade.
A questão básica é contar com um Plano Nacional de Desenvolvimento. Aqui no Brasil temos uma referência histórica. É claro que temos uma nova realidade e que devemos aprofundar e elaborar em cima dela, mas sempre nos inspirando na nossa história, com vistas à construção do futuro. E o que nos diz a história? Que o período em que as forças produtivas no Brasil mais se desenvolveram foi o da vigência do nacional-desenvolvimentismo deflagrado por Getúlio Vargas. Qual é a essência do nacional-desenvolvimentismo? Desenvolvimento com controle nacional, voltado para o mercado interno alavancado pelo salário e utilizando o Estado como instrumento fundamental, numa sorte de capitalismo de estado. Essa etapa da Revolução Brasileira poderia ter sido completada com a implementação das Reformas de Base de João Goulart, mas foi interrompida pelo golpe de 1964. São elementos que podem nos inspirar para podermos elaborar o nosso programa atual. É só assim que vamos reconstruir, consolidar e defender o nosso Estado-nação. Porque, se não se desenvolvem as forças produtivas, se se está debilitado deste ponto de vista, a ação imperialista tende a ter um peso muito grande em nosso Estado-nação. A implementação de um Plano Nacional de Desenvolvimento poderia significar a retomada, aprofundamento e conclusão da revolução deflagrada em 1930 e abrir espaço para uma nova etapa em que os seres humanos, em lugar de serem dominados pelas forças da economia, exerçam seu comando sobre elas e assim possam usá-las em seu benefício, ou seja, como disse Claudio Campos: “Libertar o Brasil. Construir o Socialismo”.
É óbvio que, para abrir espaço para a implementação de um Plano Nacional de Desenvolvimento, temos que, primeiro, afastar do caminho esse governo proto-fascista que combina o mais desbragado obscurantismo no terreno das ideias com a mais deslavada submissão ao que há de mais reacionário nos EUA, a ameaça de entrega de todo nosso patrimônio público, o ataque violento aos direitos dos trabalhadores e a ameaça à democracia tão duramente conquistada e construída a partir do fim da ditadura e que foi consagrada na Constituição de 1988. A tarefa imediata é formar a mais ampla frente política e social para bloquear esse caminho. Mas devemos desde já construir esse Plano e começar a divulgá-lo. Ou seja, como é natural, caminhar com as duas pernas.
*Nilson Araújo é Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de México, com pós-Doutorado em Economia pela USP; autor de vários livros, artigos e ensaios sobre Economia Brasileira, Economia Latino-Americana e Economia Mundial; professor do Programa de Mestrado em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

O Direito do Trabalho dos Flintstones aos Jetsons.

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A revolução digital não vai libertar o trabalhador de sua condição subalterna – muito pelo contrário.
Em algum momento da pré-história, Fred Flintstone se apresenta na empresa do Sr. Pedregulho, carregando a marmita preparada pela esposa Wilma Flintstone. Logo preenche o cartão-ponto, perfurando-o com a ajuda da mordida de um jacaré. Ele é empregado de uma pedreira e durante extenuantes e longas oito horas pilota uma espécie de dinossauro-escavadeira (bem, o homem não conviveu com os dinossauros, foi apenas uma divertida licença poética da dupla William Hanna e Joseph Barbera). O trabalho dele é físico, fatigante, repetitivo e não há espaço para criatividade. Há controle e supervisão total, no modo panóptico: ele trabalha o dia inteiro sob às vistas do patrão, que está sempre de olho para ver se o empregado não está de corpo mole.
Quando o Sr. Pedregulho soa o apito da fábrica, puxando rabo de uma ave, Fred se atira da cabine e desliza pelas costas do dinossauro, berrando yaba-daba-doo, pois chegou o fim do cansativo expediente e ele poderá resgatar a sua individualidade, voltando a fazer o que realmente gosta: jogar boliche.
Na paródia de Hanna e Barbera, Fred Flintstone era um trabalhador típico do mundo industrial e do sistema taylorista de trabalho. Ele levava uma vida dura, como a do típico “blue collar worker” americano. Mas o sacrifício valia à pena, pois o patrão Pedregulho lhe pagava um bom salário e Fred tinha casa e automóvel próprios, levando uma confortável vida de classe média. Parece até que ele também gozava de muitos direitos trabalhistas, inclusive estabilidade no emprego: despedido em quase todo episódio, no seguinte ele está reintegrado à empresa!
Embora o desenho animado “Os Flintstones” se passe na pré-história, Hanna e Barbera o utilizaram para retratar satiricamente o american way of life da classe operária americana dos anos 1960, época de empregos abundantes, altas taxas de sindicalização e salários generosos.
Com o sucesso retumbante da animação seriada, a consagrada dupla de cartunistas começou a imaginar uma versão que se passasse em um distante futuro, tentando antecipar como seria essa vida da classe trabalhadora dali a um século, no imaginário ano de 2062, quando o progresso tecnológico transformaria a sociedade e, também, as próprias relações de trabalho.
Ainda faltam 43 anos para o mundo futurista imaginado por Hanna e Barbera, mas algumas coisas que eles intuíram já estão por aí, como robôs, celulares e TVs de plasma. E também o trabalho sob as novas condições da “revolução 4.0”. Como todo exercício de adivinhação sobre o futuro, eles acertaram algumas previsões e erraram outras, inclusive sobre como seriam as relações laborais na Era Digital.
Vamos então ao ano de 2062 encontrar esse trabalhador pós-revolução tecnológica. George Jetson é um “white collar worker”, ou seja, um trabalhador de escritório que não suja suas mãos. Seu trabalho é intelectual, e consiste basicamente em apertar botões em um grande computador. Na sua empresa, ele interage com robôs programados com uso de algoritmos, preparados para fazer várias tarefas anteriormente desempenhadas por humanos. A sua jornada é flexível e bastante reduzida: Jetson trabalha apenas duas horas por semana na empresa!
Porém, se atentarmos bem, a vida de George Jetson não é muito diferente da de Fred Flintstone, especialmente porque ele está sob constante supervisão do seu chefe, o Sr. Spacely, que o vigia permanentemente como dezenas de câmeras e monitores de computador. E, com frequência, lhe dá tremendas broncas e o despede em quase todo episódio.
Mas será que no mundo futurista dos Jetsons haverá ainda Direito do Trabalho?
Temos convivido, já há alguns anos, com o discurso da obsolescência do Direito do Trabalho. Os ataques políticos à legislação trabalhista procuram se sustentar, dentre outros argumentos economicistas, em uma suposta incompatibilidade das normas laborais com a modernidade tecnológica, uma vez que elas teriam sido concebidas no século XIX como resposta a formas de organização fabril que estariam em vias de desaparecer no nosso “admirável mundo novo”. Assim, nessa visão ingênua e algo deturpada, o Direito do Trabalho seria um anacronismo tão grande quanto as velhas fábricas de antanho, que cuspiam rolos de fumaça negra pelas suas longas chaminés de tijolos. O Direito Laboral estaria, nessa linha de pensamento, tão defasado quanto o modelo fordista de produção, ao qual ele foi largamente associado.
É verdade, evidentemente, que o Direito do Trabalho é filho da Revolução Industrial (e, portanto, do capitalismo industrial). Aliás, em sua primeira infância, esse novo ramo da ciência jurídica era justamente apelidado de “Direito Industrial”. Depois, à medida em que se percebeu que o trabalhador deveria ser o foco da legislação social, a disciplina passou a ser conhecida como “Direito Operário” – imagem que, de toda a forma, remetia ao operariado das grandes fábricas (e ele assim chegou ao Brasil, na pena de Evaristo de Moraes, em 1903, nos Apontamentos de Direito Operário, primeira obra do juslaboralismo nacional).
Quando a legislação laboral passou a ser aplicada para além do mundo fabril, e à medida em que a sua doutrina ia se separando, como uma costela de Adão, da sua matriz civilista, consolidou-se então como “Direito do Trabalho”, revelando assim sua vocação transcendente ao mundo industrial. Por isso, a “forma industrial” de organização do trabalho não significa, necessariamente, “forma fabril de organização de trabalho”, ou, se preferirmos, “forma fordista”. Essa confusão ocorre devido à vinculação excessiva entre taylorismo e fordismo, que não são necessariamente congruentes. É preciso lembrar que o taylorismo precede e, de alguma forma, ultrapassa o fordismo. E aqui é preciso uma breve digressão histórica.
A Revolução Industrial significou, do ponto de vista tecnológico, a possibilidade de produção em série (padronização da manufatura) e em grandes quantidades (massificação do consumo). Para tanto, era preciso concentrar centenas ou milhares de trabalhadores em unidades fabris. Esses empregados precisavam estar atentos às máquinas que operavam (daí a origem do termo “operário”). Isso somente era possível com ordem e disciplina. Adotaram-se, para isso, as técnicas militares, já conhecidas para comandar, dirigir e subordinar grandes grupamentos de pessoas reunidas para o cumprimento de uma missão comum.
Assim, o trabalhador, ao adentrar à fábrica, veste um uniforme, obedece a ordens, cumpre um rígido regulamento, é vigiado constantemente e punido quando quebra as regras.
Ele abandona a sua individualidade e se despersonaliza, exatamente como um soldado no exército, salvo que essa sujeição tem hora para começar e terminar. Ele abre mão da igualdade civil e se submete voluntariamente à tirania do capataz.
Não à toa, os patrões passaram a ser chamados de “capitães de indústria”, expressão cunhada pelo escritor Thomas Carlyle em 1843 na obra “Passado e Presente”, uma ácida crítica à exploração do proletariado na Inglaterra de então. Além disso, para conseguir aumento de produtividade, o objetivo do patronato era pagar o menor salário possível pelo maior tempo à disposição do trabalhador, no limite de sua exaustão e sujeição. Como se pode imaginar, esse tipo de organização do trabalho foi propício ao “despotismo fabril” e, consequentemente, à fermentação de revoltas operárias, que representavam um distúrbio no sistema de produção.
Quando Frederick Taylor abandonou a Faculdade de Direito de Harvard e começou a trabalhar como operador de máquinas na Midvale Steel Company, na Pennsylvania, em 1878, ele percebeu que a gestão industrial exclusivamente militaresca era ineficiente. Sem descurar da disciplina, era preciso organizar melhor o processo produtivo, treinar os trabalhadores, especializar suas tarefas, vigiar não apenas a presença física do trabalhador, mas o ritmo e a forma como as tarefas eram executadas.
Para ele, era necessário também cuidar da disposição, da saúde e do padrão de vida do operário, aumentando salários e reduzindo a jornada, não como medida humanitária ou filantrópica, mas para alcançar ganhos de produtividade. Embora o seu método de “administração científica” não tivesse como propósito o desenvolvimento de uma teoria social, é certo que subjacente ao modelo taylorista havia uma premissa de conciliação para o conflito de classes ou, no mínimo, uma fórmula para o seu arrefecimento.
O método de Taylor foi tão bem-sucedido que ele deixou a siderúrgica onde havia se tornado o diretor-geral e passou a atuar como consultor empresarial em vários tipos de indústrias.
É claro que a mais notória experiência prática de aplicação do taylorismo se deu na fábrica de automóveis de Ford em Detroit. Foi o próprio Henri Ford (para quem Taylor não trabalhou) que aperfeiçoou a metodologia, valendo-se, por exemplo, das esteiras rolantes. A partir do fordismo, a forma taylorista de administração científica começou a ser popularizada e empregada muito além da indústria de transformação. Ela se tornou o padrão em praticamente todas as empresas, industriais ou não, e segue sendo aplicada até os dias de hoje, em grandes e pequenas organizações.
Aliás, convém lembrar que nos Estados Unidos o termo “indústria” (industry) não se refere exatamente ao conceito originário estrito, em seu sentido “fabril”, mas a todo e qualquer “negócio” (business) setorial, como, por exemplo, na expressão “indústria do entretenimento”, “indústria do fast food”, “indústria lojista ou supermercadista” (retail industry), nas quais nem sempre há operários trabalhando em linha de produção, mas onde são encontrados trabalhadores sob regime de administração científica: empregados treinados, laborando com divisões de tarefas bem definidas, em ritmo controlado e sob alguma forma de supervisão e controle, mais ou menos rígida. Ou seja, um taylorismo sem fordismo.
Tampouco se deve incorrer no erro, algo comum, de que o toyotismo significou o fim do taylorismo. A organização “flexível” surgida na fábrica da Toyota, no Japão, incorporou parte da doutrina taylorista, porém voltou-se nesta fase à desconcentração da produção e do trabalho, dando início aos processos de terceirização que se acentuariam a partir dos anos 1970. A ideia de “especialização do trabalho”, uma fórmula criada por Frederick Taylor foi levada ao paroxismo para delimitar as “atividades fins” do próprio empreendimento.
O toyotismo pôs fim a algumas dimensões do fordismo (como a ideia de “empresa total”), mas nem de longe afastou as premissas tayloristas em relação à administração da mão de obra dos empregados da empresa “mãe” ou daqueles de suas “terceirizadas”. Assim como, igualmente, algumas concepções do militarismo laboral sobreviveram ao taylorismo-fordismo e chegaram aos dias de hoje (por exemplo, a “uniformização” dos trabalhadores e o poder de vigilância e punição do patronato).
Mas e o trabalho na “Era dos Jetsons”, com automação, teletrabalho, algoritmos e uberismo? Será que a revolução digital vai libertar o trabalhador de sua condição subalterna e do poder “potestativo” do empresariado? Mais do que o “fim do trabalho”, estaríamos diante do “fim do emprego” e, consequentemente, do Direito do Trabalho, que surgiu e se desenvolveu para proteger o trabalhador contra os excessos inerentes aos modelos organizacionais militarista-taylorista-fordista-toyotista?
Nada indica que isso esteja ocorrendo ou prestes a ocorrer. Eu diria, muito ao contrário: a revolução digital está apenas aprofundando os modelos organizacionais superpostos anteriores, criando novas formas de controle e exploração e, até mesmo, aprofundando as já experimentadas no militarismo, taylorismo, fordismo e toyotismo. A “cibernética”, aliás, foi definida pelo seu fundador, o matemático americano Norbert Wiener, como um instrumento para “desenvolver uma linguagem e técnicas que nos permitam abordar o problema do controle e da comunicação em geral”.
E são justamente as grandes empresas de tecnologia (“Big Techs”) que estão usando a cibernética para estabelecer um “neotaylorismo” de controle total sobre os seus empregados. Basta ver o sistema de trabalho nos enormes galpões de logística da Amazon, hoje o maior empregador dos Estados Unidos, com cerca de 250 mil trabalhadores contratados naquele país (e 600 mil em todo o mundo).
A Amazon se vale de todas as técnicas de administração dos trabalhadores desenvolvidas desde os primórdios da Revolução Industrial até a presente “Era dos Jetsons”.
Nesta que é um exemplo paradigmático de empresas da Revolução Digital, encontramos o militarismo (uniformização e regulamentos redigidos para os empregados), o taylorismo (medição do tempo médio destinado a cada tarefa), o fordismo (sim, há esteiras rolantes nos galpões da Amazon), o toyotismo (terceirização do serviço de entrega) e uberização (serviço de entrega com uso de aplicativos de motoristas).
E o que mais chama a atenção no caso da Amazon é a utilização de algoritmos para o controle da produtividade dos empregados, experiência que foi amplamente divulgada pela imprensa quando se descobriu que as demissões dos empregados são decididas por um software inteligente que descarta os trabalhadores mais “lerdos” no desempenho de suas tarefas, cuja média é calculada a parir de dos scanners pessoais que os empregados usam para expedição dos produtos de suas prateleiras e esteiras.
Porém, tal como os homens que os criaram, os algoritmos não são perfeitos e acabam por reproduzir os preconceitos e vieses humanos. Ao estabelecer uma média temporal para a execução das tarefas (concepção puramente taylorista), os computadores da Amazon esqueceram que entre os seus trabalhadores havia mulheres grávidas, cujo tempo de execução das tarefas era maior devido à sua condição e à maior frequência com que precisavam ir ao banheiro. Resultado: o algoritmo classificou as grávidas entre as mais ineficientes e as despediu. Não é preciso dizer que o fato gerou ações trabalhistas por discriminação.
Portanto, no mundo futurista que começamos a experimentar, todo o aparato tecnológico apenas reforçará a condição subalterna da classe trabalhadora. Como muito bem perceberam William Hanna e Joseph Barbera, apesar do tempo que os separa, Fred Flintstone e George Jetson vivem em uma realidade muito semelhante: a do capitalismo que, sim, gera empregos e riqueza, mas, ao mesmo tempo, inexoravelmente, impõe a submissão do homem pelo homem. E, para regular esse paradoxo, precisaremos, cada vez mais, do Direito do Trabalho.
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Este artigo foi baseado na palestra que proferi no painel “Novas Dinâmicas de Trabalho – Reflexões Críticas”, do II Seminário Nacional do Movimento da Advocacia Trabalhista Independente (MATI), realizado no dia 30 de agosto de 2019, na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
(*) Cássio Casagrande é Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
Fonte: JOTA, por Cássio Casagrande (*), 02.09.2019