Textos

quarta-feira, 27 de março de 2019

O papel do Islã na geopolítica mundial





O Islã na geopolítica mundial
O intertítulo que coloquei acima não é bem preciso, pois não é uma religião que joga um papel em um cenário político mundial, mas sim seus seguidores, aqueles que interpretam as escrituras que lhes são sagradas. Mas, deixemos assim. Até porque sabemos que, por exemplo, o papado de Francisco irá acarretar mudanças profundas não só na estrutura de sua Igreja, como pode interferir na geopolítica mundial. No caso do Islã é a mesma coisa, ainda que estes não tenham uma figura central como o papa.
Podemos dizer que existem hoje dois tipos de muçulmanos no mundo. Os mais politizados e progressistas, defendem uma luta anti-imperialista e pela soberania nacional de todos os povos e países. Ou seja, a não interferência das potências mundiais nos assuntos internos dos países. Existem outros que defendem exatamente o contrário, como podemos ver o caso da República Árabe da Síria que sofre ataques de “jihadistas” vindos de várias partes do mundo pelo simples fato que querem depor o seu presidente democraticamente eleito pelo povo sírio. Acabam por fazer, na prática, o jogo do imperialismo estadunidense.
Isso fica mais claro quando vimos no passado não tão distante que, entre 1979 e 1989, a CIA e os EUA deram total apoio ao que depois foi caçado – e morto – como o terrorista mais procurado, que foi Osama Bin Laden. Ele recebeu treinamento, armas e apoio de inteligência para formar a sua organização terrorista que ficou posteriormente conhecida como Al Qaeda, hoje funcionando quase que como uma franquia, com “filiais” em vários países do mundo. Eles combatem única e exclusivamente os cristãos e os xiitas, em vários países. 
Da mesma forma ocorreu com o Iraque de Saddam Hussein entre os anos de 1980 e 1988, quando este aceitou apoio dos EUA para agredir o Irã durante oito longos anos. Para isso, da mesma forma que Saddam Hussein, recebeu todo tipo de apoio dos EUA para essa agressão. Vejam que não é coincidência essas agressões tanto no Afeganistão quanto no Irã e que ocorrem simultaneamente. Ainda que o Irã nada tenha de socialista e jamais tinha sido um país de influência soviética desde a sua revolução islâmica em 1979, era preciso desgastar de uma só vez tanto o Irã, quanto a URSS. Assim age o imperialismo estadunidense. 
Os xiitas tem, ao meu modo de ver, da realidade geopolítica mundial hoje, uma percepção bastante clara sobre o significado da luta anti-imperialista. O país chave de onde emanam essas orientações, que vem sendo duramente perseguido, é o Irã, em especial após a sua revolução islâmica de 5 de fevereiro de 1979, que completou recentemente 40 anos.
Mas também não só o Irã. Hoje tanto a Síria quanto o Iraque, como o Líbano, vivem sob governos de orientação anti-imperialista. E no Líbano, em particular, vemos a presença de uma das organizações mais conscientes do significado da luta contra o EUA que é o Hezbolláh (Partido de Deus em árabe). Os militantes e combatentes do Hezbolláh têm forte presença na Síria, na defesa do povo sírio e de seu governo do presidente Bashar Al Assad. Mesmo no Líbano, os cristãos libaneses e sunitas sabem que quem protege o país dos ataques de Israel é mesmo essa organização revolucionária. 
As estimativas mais recentes dão conta de que existem no mundo em torno de 1,5 bilhões de muçulmanos, dos quais estima-se que 400 milhões sejam xiitas. Estes fazem uma peregrinação, além de Meca, para a cidade de Carbala, que fica a 85 Km de Bagdá no Iraque. Hoje essa cidade tem pouco mais de 600 mil habitantes. Foi nela que no dia 2 de outubro de 680 da nossa era (e ano 61 da era Islâmica), Hussein, filho de Ali e neto de Maomé foi martirizado. Esse dia é conhecido como ashura, dia que Maomé jejuou enquanto em vida segundo os sunitas e que os xiitas relembram o martírio do neto do Profeta. Se achamos que cinco milhões de pessoas indo à Meca todos os anos é muita gente, a cidade de Carbala, onde está o túmulo de Hussein, é visitada todos os anos por mais de 20 milhões de pessoas! Diz-se que é a maior concentração de seres humanos em deslocamento (não naturais do local) da terra.
No mundo hoje temos 47 países que integram a Organização da Conferência Islâmica. Dos 1,5 bilhões de pessoas que seguem a religião islâmica, apenas 400 milhões de pessoas são árabes. Muitas vezes nós confundimos povo com a religião. Como jamais podemos dizer “povo cristão” (qual a semelhança de um cristão inglês com um brasileiro? Nenhuma. O que os une é apenas a religião), não podemos dizer “povo muçulmano” e muito menos achar que todos os árabes são membros da religião islâmica.
Como dissemos acima, vemos nos xiitas uma compreensão melhor da luta anti-imperialista. Mas, não que entre os sunitas não existam combatentes anti-imperialistas. Mas, boa parte destes por influência Saudita com o wahabismo e do salafismo (mais forte no Qatar), tem dado combate mesmo tanto aos xiitas quanto a cristãos em países como o Líbano e a Síria. Lamentamos isso, pois o imperialismo bate palmas para esse comportamento. 
No Oriente Médio, formou-se o que vem sendo chamado de Arco da Resistência, com os países acima mencionados, mais os nasseristas, socialistas, comunistas e patriotas em geral que defendem um Oriente Médio sem a presença e a influência nefasta dos EUA. Em especial os xiitas, não aceitam jamais que os EUA mantenham duas bases militares exatamente ao lado das cidades mais sagradas para a sua religião, que são Meca e Medina. Eles dizem que a Arábia Saudita está nas mãos de infiéis e traidores do Islã, por entregar parte de seu território aos EUA. Muitas vezes eles usam o termo “grande satã”. 
Nesse sentido, entendemos que o Islã e seus seguidores, jogarão cada dia um papel mais preponderante e decisivo na luta contra o mundo unipolar, pois acabam defendendo a multipolaridade, que os beneficiaria. Por isso essa aliança ampla, que em algumas localidades não é formalizada, mas apenas tácita. 
Eu arrisco dizer que ela começou na índia no dia 1º de março de 2006, quando George W. Bush (filho) foi recepcionado com uma das maiores manifestações políticas que esse país já tinha presenciado. Ela só foi esse sucesso por uma aliança estabelecidas entre os comunistas indianos – país onde são fortes – com os muçulmanos e patriotas em geral que repudiaram a visita do chefe do imperialismo ao seu país. 
Acho que essa aliança, que não é formal, mas apenas tácita, deve se consolidar em torno de uma plataforma comum, que leve em conta a política da não interferência nos assuntos dos países (autodeterminação dos povos), a soberania nacional e a busca de um mundo multipolar. Acho que veremos em breve isso acontecer. 
* Sociólogo, professor universitário (aposentado), pesquisador, analista internacional e autor de dez livros na área de política internacional e Sociologia. É colaborador das páginas de Internet Brasil 247, Fundação Grabois, Vermelho, Resistência e Duplo Expresso.
Notas
 1 - Para o aprofundamento sobre o tema das religiões monoteístas recomendo a leitura de Os monoteístas – Os povos de Deus (volume 1), de Francis Edward Peters, editado pela Editora Contexto, em SP, em 2007, com tradução de Jaime A. Clasen, com 360 páginas.
2  Garaudy justifica isso com a seguinte passagem: “Deus revela a sua palavra e a sua lei e não a si mesmo. Para um muçulmano, acreditar que o ‘verbo se fez carne’ ou ainda aplicar a Deus em ‘nome do pai’ sería alterar a transcendência de Deus’”. Página 50 do livro referenciado em nota posterior. 
3 Para entender melhor essa questão dos Imãs xiitas, veja nesta página do Wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Doze_Imãs que tivemos aceso em 18 de fevereiro de 2019, às 14h40. 
4  Ver o livro de Karen Armstrong, uma ex-freira católica de Londres, das mais respeitadas pesquisadores das três religiões monoteístas. Um de seus livros é O Islã editado no Brasil pela Editora Objetiva, Rio de Janeiro em 2001, página 112. Ela tem 12 dos seus inúmeros livros traduzidos para o português (do Brasil), dos quais eu li nove deles: 
5  A comprovação disso está no sugestivo do excelente livro, cujo título é Islã: o credo é a conduta, também editado pela Vozes, no Rio de Janeiro, em 1990, organizado por Roberto S. Bartholdo Jr. e Arminda Eugênia Campos, com 340 páginas.
6  Adoto em minhas citações do Corão a edição da Folha de São Paulo, da sua coleção intitulada “Livros que mudaram o mundo”, editada em São Paulo em 2010, cuja tradução primorosa foi feita pelo meu amigo Prof. Samyr El Haiek. O livro possui 704 páginas e exatas 2.598 notas explicativas. 
7  Recomendo expressamente a leitura de um de seus livros com tradução para o português do Brasil, que é Promessas do Islã, traduzido por Edison Darcy Heldt, da Editora Nova Fronteira, publicado no Rio de Janeiro em 1988, com 192 páginas.
8  Estas duas passagens estão no seu livro já referenciado nas páginas 23 e 24. 
9  Essas são passagens do livro Beharol Anvar, de Allame Majlesi, volumes 1 e 2, páginas 32 e 195
10.  O Islã, obra já citada, página 208.
11  Alcorão, edição citada da Folha de São Paulo, página 386. 
12   Opus citatus página 353. 
13  Opus citatus página 383.
14  Sociologia do Islã de Enso Pace, editado pela Editora Vozes, Rio de Janeiro, 2005, página 91. 

Originalmente publicado pela Fundação Mauricio Grabois.

Nenhum comentário:

Postar um comentário