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quarta-feira, 17 de abril de 2019

Imposto é roubo? E a sua propriedade?


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Imposto é roubo.  Uma vez que o ato de tributação é não consensual, há correntes libertárias que defendem se tratar de uma espécie de roubo, considerando que o Estado não pergunta ao cidadão se ele concorda ou não com o pagamento de imposto. Linhas menos extremadas, mas ainda eminentemente liberais, apontam que o pagamento do imposto, se desacompanhado da contrapartida estatal, seria ilegítimo. Apontam o senso comum do “não vemos retorno do tanto de impostos que pagamos” e, portanto, advogam pela sua ilegitimidade[1] – o que é diferente de ilegalidade, ressalte-se.
Entende-se, por essas linhas acima destacadas, que o cidadão teria o direito ao fruto do seu trabalho – ou do trabalho alheio –, da remuneração do capital, ou do que o valha, e que o Estado, pelo ato de tributar, realizaria algo semelhante a uma expropriação do patrimônio do indivíduo. Em outras palavras, o sujeito possuiria a renda pré-tributada, o que lhe seria uma espécie de direito natural, e em seguida viria o Estado a retirar uma parte desta renda através da cobrança de tributos. Residiria, neste ponto, a alegada ilegitimidade do ato da tributação em geral, ou ao menos quando não acompanhado da devida contrapartida. Repete-se, o que já tratei aqui em outros artigos, uma espécie da naturalização ou sobreposição do direito de propriedade.
Liam Murphy e Thomas Nagel, na obra o Mito da Propriedade, realizam verdadeira ressignificação do conceito de justiça tributária e assim o fazem através de uma nova visão do que efetivamente seja o direito de propriedade.
Atestam que a propriedade é uma construção social e, por este motivo, depende de um sistema de Estado que a legitime e proteja. Portanto, ressaltam que esta mesma estrutura jurídica e de Estado, por ser este o ente que protege e possibilita a propriedade, é do mesmo modo o ente legítimo para tributar os bens dos indivíduos.
Ressaltam que não há que se falar em renda pré-tributada, mas sim naquela que permanece em mãos particulares após realizado o ato de tributação estatal, visto ser tanto o direito à propriedade como a legitimidade da tributação conceitos que emanam da mesma fonte, qual seja, a existência de um arcabouço legal e de uma força de Estado.
Desse modo, os autores revisam a noção difundida usualmente de que o indivíduo possuiria uma renda pré-tributada e o ato de tributação espoliaria esta riqueza. Na verdade, os autores afirmam o oposto, de que somente pela existência de um órgão de tributação – no caso o Estado – é que se pode garantir o direito à propriedade.
Defendem que, muito embora o mercado já tenha se comprovado como a melhor instituição na alocação de recursos, este só existe se houver um Estado para lhe preservar o melhor funcionamento possível. 
Destaco passagem da obra:

Por isso, é logicamente impossível que as pessoas tenham algum tipo de direito sobre a renda que acumulam antes de pagar impostos. Só podem ter direto ao que lhes sobra depois de pagar impostos sob um sistema legítimo, sustentado por uma tributação legítima – e isso demonstra que não podemos avaliar a legitimidade dos impostos tomando como critério a renda pré-tributada. Pelo contrário, temos de avaliar a legitimidade da renda pós-tributária tomando como critério a legitimidade do sistema político e econômico que a gera, o qual inclui os impostos, que são aliás uma parte essencial desse sistema. A ordem lógica da prioridade entre os impostos e o direito de propriedade é inversa à ordem suposta pelo libertarismo[2].

Portanto, a questão sob essa ótica caminha muito mais no sentido de: se você acha legítimo que um Estado lhe garanta o direito de propriedade, não é possível achar ilegítimo que este lhe cobre tributos.
Nesta mesma direção segue a obra do autor italiano, Franco Galo, Las Razones Del Fisco[3], ao apontar que não há que se falar na propriedade como um limite ao poder estatal de tributação, mas sim que o direito do proprietário decorre do mesmo sistema legal que institui o tributo e, assim, o que se opera na verdade é o direito de propriedade que deve encontrar limites neste ordenamento. Em suma, aponta que não é o ordenamento jurídico que deve se adequar à propriedade, mas esta sim se adequar ao que for – ao menos na teoria – socialmente estabelecido e posteriormente positivado no ordenamento jurídico.
Este autor, acrescentando, apresenta duas correntes que se oporiam:  a deontológica naturalista e a político jurídica consequencialista. A primeira, de matriz liberal, defende que os tributos devem observar principalmente as questões econômicas provenientes de um mercado livre, de forma a maximizar os ganhos individuais. Em oposição – e defendida pelo autor – a corrente consequencialista aponta que a economia de mercado pode sim eventualmente ser relevante nas decisões fiscais, no entanto é a economia que deve ser adequar às conformações legislativas, oriundas de debates sociais, e não o contrário.
Portanto, e agora debatendo a questão da contrapartida, há confluência na compreensão destes dois autores a afastar essa lógica, de natureza privatista, considerando os fins desejados pelo Estado. Ao Estado não caberia o papel de mera retribuição ao indivíduo ao que ele pagar a título de impostos, mas sim decidir, através da política, a melhor destinação para estes recursos. Ademais, o ato de tributar deve também verificar condutas desejáveis ou indesejáveis socialmente, de maneira a desincentivar as primeiras – ou ao menos taxar suas externalidades negativas –, bem como incentivar as segundas – visto que a sociedade eventualmente se favorecerá das externalidades positivas.
Assim, uma conclusão que retiro da leitura destas duas obras é que, da mesma forma que o princípio da capacidade contributiva utiliza da noção de utilidade marginal do dinheiro para definir alíquotas tributárias, o destino dos recursos públicos deve lançar mão da análise da utilidade marginal do gasto público. Utilidade marginal, grosseiramente explicando, é quanto a mais uma unidade daquela mesma coisa ou bem trará satisfação ao beneficiário[4].
Assim, deve-se analisar quanto a mais de satisfação um real a mais trará para aquele destino do gasto público do que para outro eventualmente preterido. Certamente que conjugada a toda uma outra série de escolhas políticas a serem realizadas.
Portanto, e chegando ao fim deste artigo que se alongou mais do que o pretendido, procurei afastar a noção, mesmo ciente que difundida apenas por correntes mais extremas, de que o imposto seria roubo. Ora, se o mesmo ordenamento legal que lhe garante propriedade é o que lhe impõe a cobrança de tributos, a noção de que imposto seria roubo possui uma contradição interna óbvia.
Do mesmo modo, a noção de imposto vinculado diretamente a uma contrapartida é a mera reprodução privatista em um âmbito público, o que não se sustenta se analisadas as finalidades estatais. É que, se o arcabouço jurídico que garante a propriedade também define algumas finalidades para o Estado, o imposto pago deve, prioritariamente, atender a estas finalidades, e não se prestar a uma contrapartida a quem o paga.
É certo que não desconsidero a questão da corrupção e da malversação dos recursos públicos. No entanto estes são problemas que desnaturam os princípios trabalhados acima e, assim, não se prestam como contraponto aos argumentos trabalhados. Fosse assim, poder-se-ia refutar a lógica de contrapartida dos impostos apontando-se a corrupção privada, ou seja, o indivíduo que objetiva a contrapartida sem recolher devidamente o imposto. E não é este o caso da discussão aqui trabalhada.
Do mesmo modo, não se tratou de defesa do sistema tributário brasileiro que, cada vez mais, se consolida o consenso acerca de sua injustiça e regressividade, em que pobres e a classe média são proporcionalmente mais tributados que as camadas mais altas da sociedade. O que pretendi neste artigo foi, ainda que forma indireta, defender que qualquer solução para as falhas do nosso sistema tributário não passa por qualquer hipótese de deslegitimação da atividade arrendatória, mas sim pela sua racionalização e profunda reforma.
Umberto Abreu Noce é Advogado, formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestre em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

[1] Verifica-se nesta linha uma confusão conceitual entre imposto e taxa. O que o senso comum trata como imposto seria, nesta ótica, o instituto genérico do Tributo. Contudo, objetivando manter maior diálogo no texto, evitei adentrar nestes tecnicismos e reproduzi a linguagem corrente sobre a questão.
[2]MURPHY, Liam. NAGEL, Thomas. O Mito da Propriedade. São Paulo, Martins Fontes: 2005, p. 46.
[3]GALLO, Franco. LazRazones Del Fisco. Madrid. Marcial Pons, 2011.
[4] O professor Clóvis de Barros Filho faz, ainda que não o mencione expressamente, uma análise da utilidade marginal de um bem utilizando a pamonha como exemplo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rH0vUtcLm5s

Originalmente publicado no portal Justificando

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